Dos escombros da Primeira Guerra, a doença se alastrou como não se via desde a Peste Negra medieval. Atingiu soldados, artistas, rei, presidentes e influenciou acontecimentos que desembocaram na Segunda Guerra Mundial. Em setembro de 1918, a epidemia chegou a Fortaleza e marcou a arte.
Há cem anos, o planeta atravessava flagelo que não parecia acabar, qual fora prenúncio do fim dos tempos. Era o quarto ano de uma guerra como nunca se vira até então. Época de revolução e de aparições místicas. Então, dos escombros e trincheiras enlameadas, emergiu uma praga só comparável à Peste Negra Medieval.
Nunca uma epidemia se alastrou tão rápido por área tão extensa e matando tanta gente. No dia 4 de março de 1918, no Kansas (EUA), ocorreu o que foi considerado o primeiro registro do que ficou conhecido como Gripe Espanhola. O local era destinado ao treinamento de tropas dos Estados Unidos para ir ao front na Primeira Guerra Mundial. O primeiro diagnóstico conhecido foi de um soldado. Logo a epidemia varreu a Europa. Em seis meses, aportou no Nordeste brasileiro. Chegou a Fortaleza, onde fez vítimas e ficou registrada na arte local.
Não há estimativas confiáveis, mas diferentes fontes falam em 20 milhões a 40 milhões, chegando a 50 milhões ou até 100 milhões de mortos em pouco mais de dois anos. Para ter ideia da dimensão que isso significa, a Primeira Guerra Mundial - que terminou naquele 1918 e redefiniu tecnologias bélicas, estratégias de luta e padrões de mortandade - tem número de cadáveres estimado entre 10 milhões e 20 milhões em quatro anos. "Quem não morreu na Espanhola?", foi a indagação registrada pelo dramaturgo Nelson Rodrigues em suas Memórias.
Entre os mortos no Brasil está Rodrigues Alves. Ele foi eleito em 1º de março de 1918 para o segundo mandato de presidente da República - o primeiro havia sido de 1902 a 1906. Porém, antes da posse, em 15 de novembro, contraiu a doença. Em seu lugar, tomou posse o vice-presidente Delfim Moreira. Alves morreu em 16 de janeiro de 1919, sem ter conseguido assumir o cargo. Conforme a regra da época, houve nova eleição, pois a vacância ocorreu antes da metade do mandato.
Rumos do pós-guerra
Não só a política brasileira foi afetada. Líderes e celebridades pelo mundo foram acometidos. Entre eles, o rei Afonso XIII, da Espanha. Isso acabou contribuindo para o nome pelo qual a pandemia ficou celebrizada.
Acredita-se que os primeiros casos remontem ao final de 1917, provavelmente nos campos de batalha europeus. Antes do caso em Kansas, na região central dos Estados Unidos, em 4 de março, patologistas militares haviam identificado sintomas de o que parecia ser uma nova doença. Mais tarde, a análise desses casos documentados levou à hipótese de que já seriam a gripe. Porém, nos países em guerra havia severo controle de informação.
O uso de armas químicas foi das mais devastadoras novidades introduzidas naquele conflito. Havia temor de que as mortes fossem provocadas por alguma tecnologia desenvolvida pelo inimigo. Além disso, a notícia de que epidemia se alastrava entre as tropas poderia abalar o moral dos combatentes e dar ânimo aos adversários. Por esses motivos, notícias sobre a gripe foram censuradas de modo implacável nas nações beligerantes. Já na neutra Espanha, as informações circulavam mais livremente. Isso criou a falsa impressão de que o País foi mais afetado pela doença. Daí ter ficado marcada como Gripe Espanhola.
Passados 80 anos, em 1999, pesquisa conduzida pelo virologista John Oxford apontou o hospital de campanha em Étaples, no extremo norte da França, como provável foco de origem da pandemia, no inverno de 1917.
Décadas depois da epidemia, foi descoberta carta de um médico americano com relato dramático sobre os sintomas. O texto foi publicado no British Medical Journal. "Desenvolvem rapidamente o tipo mais viscoso de pneumonia jamais visto. Duas horas após darem entrada (no hospital), têm manchas castanho-avermelhadas nas maçãs do rosto e algumas horas mais tarde pode-se começar a ver a cianose estendendo-se por toda a face a partir das orelhas, até que se torna difícil distinguir o homem negro do branco. A morte chega em poucas horas e acontece simplesmente como uma falta de ar, até que morrem sufocados. É horrível. Pode-se ficar olhando um, dois ou 20 homens morrerem, mas ver esses pobres-diabos sendo abatidos como moscas deixa qualquer um exasperado".
O rei espanhol sobreviveu à doença. Outras celebridades mundiais tiveram a Espanhola e escaparam, como o tcheco Franz Kafka, um dos maiores escritores de todos os tempos. Na época, O processo estava sendo escrito e O castelo nem havia sido iniciado. Walt Disney também foi contagiado, uma década antes de criar o Mickey Mouse. Lenda da história do cinema, a atriz sueca Greta Garbo teve a doença na adolescência.
Franklin Delano Roosevelt, que seria o presidente que conduziria os Estados Unidos ao longo dos anos de Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, foi outro a ser acometido. Na época, ele era secretário assistente da Marinha.
No cargo de presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson teve a Espanhola enquanto participava das negociações de paz ao final da Primeira Guerra. Ele defendia um acordo igualitário, mas teve envolvimento nas conversas prejudicado. Não fosse pela doença, talvez ele tivesse influenciado por outro teor do Tratado de Versailles.
Os duros termos impostos à derrotada Alemanha mergulharam o país em grave convulsão econômica, social e política. Criaram, então, ambiente para ascensão do nazismo e a eclosão da Segunda Guerra Mundial. O resto é história.
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