Reproduzido do site Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB)
No mês passado, junho, o espetáculo “Prometemos não chorar” esteve em cartaz no teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza. O leitor atencioso já percebeu que o nome da peça remete a música de mesmo nome, famosa na voz de Barros de Alencar, a música é uma versão de uma composição argentina, "Prometimos no llorar", feita por Ramon Bautista Ortega e Palito Ortega, de 1972.
A peça conta a história de três irmãs que perderam o pai, Perfídia (Morgana Fabricio), Carol (Ana Bia de Matos) e Diana (Aretha Karen), e que são constantemente exploradas pela madrasta Lady Laura (Samanta Sanford) e sua filha Sandra Rosa (Yasmin Elica), por conta disso são obrigadas a trabalhar em um bar comandado pelo trambiqueiro Charlie Brown (Clark Ribeiro) que por sua vez também explora seu sobrinho, Fernando (Leonardo de Sá).
O espetáculo é dirigido por Glauver Souza e o roteiro é feito em parceria com Vanessa Pinheiro e Bruno do Vale. A peça é construída em torno de músicas do que se convencionou a chamar de “brega”, os próprios nomes dos personagens já fazem essa referência, antes mesmo do show começar o público já entra no clima desse universo, ainda na fila são distribuídas doses de cachaça e quando você entra no teatro músicas românticas são tocadas, Como vai você e Em plena Lua de Mel são alguns dos exemplos do que toca para ir deixando o público no clima da peça.
Dando um exemplo de como as músicas são usadas no roteiro, é possível citar uma das primeiras cenas, que mostra a situação de abuso das três irmãs por sua madrasta, em seguida elas começam a cantar Eu não sou cachorro, não, composta e gravada pelo icônico Waldick Soriano:
Eu não sou cachorro, não
Pra viver tão humilhado
Eu não sou cachorro, não
Para ser tão desprezado
O uso dessa canção nessa cena faz refletir sobre a força do refrão da composição de Waldick Soriano. Eu não sou cachorro, não foi lançada em outubro de 1972, em pouco tempo a música alcançou as paradas de sucesso e o disco vendeu milhares de cópias. Segundo Paulo Cesar de Araújo em seu livro Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar, mesmo na época muitos tentavam entender o sucesso da canção e muitos dos que tentaram discutir sobre afirmavam que o povo brasileiro era ingênuo. E percebemos que até hoje esse pensamento elitista permanece, as classes altas e a classe letrada preferem achar que o pobre não tem educação, não tem “cultura de verdade”. Apenas a exaltada MPB sabe fazer música, né?
De acordo com Paulo, em seu livro já citado, a canção é mais um bolero de dor-de-cotovelo. Entretanto, o refrão teria uma força que se sobressai ao resto da canção, lembrando que Waldick Soriano, Odair José, Nelson Ned, Fernando Mendes e outros músicos dessa geração faziam sucesso justamente nas classes mais baixas do nosso país, por isso na hora de cantar “Eu não sou cachorro, não / pra viver tão humilhado / Eu não sou cachorro, não / para ser tão desprezado”, poderia ser interpretado como um grito de protesto contra as humilhações constantes que a classe trabalhadora sofre. Citando diretamente Paulo Cesar de Araújo: Portanto, a canção reflete a condição social e os embates contra o autoritarismo vivenciados pelo próprio autor.
Waldick Soriano teve que trabalhar desde criança, como mostrado no documentário Waldick, sempre no meu coração, produzido e dirigido por Patricia Pillar, então desde cedo conheceu a desigualdade social e as humilhações que isso acarreta.
Voltando para a peça, além dos personagens já citados, a peça tem um narrador que é interpretado por Bruno do Vale, que dialoga diretamente com o público em alguns momentos.
A peça se desenrola a parte da dúvida das irmãs acerca da morte do pai, desconfiam da mãe, com isso temos o personagem do detetive Falcão (Mulher Barbada). Não se preocupe, a peça não é nenhum drama policial, e sim humor, e espalhafatoso, com tudo que merece, seja nas interpretações das músicas ou jeitos exagerados de determinado personagem, aqui tudo é motivo de riso e de música, muita música.
Da esquerda para direita, Lady Laura, Charlie Brown, o queridíssimo narrador, Perfídia, Diana e Carol.
Além das músicas já citadas, vamos ouvir durante a peça canções como Garçom, Sandra Rosa Madalena, Diana, É o amor, Pense em mim, entre outros diversos sucessos do cancioneiro romântico. Apenas senti falta de alguma composição de Odair José, como Eu vou tirar você desse lugar, ela está presente na playlist oficial da peça, então suponho que as músicas podem alternar.
De qualquer forma, a peça é diversão garantida, muita risada e música boa, depois do show os atores saem para conversar com público. O espetáculo é um deleite para quem ama uma boa música romântica e que não tem medo de demonstrar seus sentimentos. Porque brega de verdade é quem tem vergonha de ser o que é.
“Quem não é brega quando fala de amor? É o amor que é brega, não a minha música.”
(Nelson Ned)